terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

João Afonso e a assistência hospitalar na Santarém Medieval

Santarém chegou a ser a terceira localidade do País com maior número de habitantes, logo após Lisboa e Porto. Geograficamente localizada no centro do reino, a urbe escalabitana possuía inúmeros recursos agrícolas, uma saudável pujança económica, bem como uma influência política que se estendia à própria corte, instalada em Lisboa.
Numa época em que a pobreza tinha um carácter principalmente itinerante, verificava-se a existência de uma certa mobilidade, que trazia à vila os chamados ‘nómadas sociais’, pobres e deserdados. Procuravam sobretudo abrigo e alimentação, junto das inúmeras obras de assistência, espalhadas pelo espaço intramuros da vila do planalto e os arrabaldes urbanos.
Sabe-se que, entre o final do século XII e meados do século XVII, Santarém chegou a deter, no seu conjunto, perto de 50 casas assistenciais, entre
hospitais, albergarias, leprosarias, confrarias, ou mercearias. Estas últimas, caracterizavam-se por serem uma forma especial de hospício, destinado a auxiliar e permitir estadias mais prolongadas a doentes e entrevados. Praticamente, todos os bairros e paróquias na parte alta da vila medieval possuíam pequenas instituições de apoio, enquanto na parte baixa, nas povoações ribeirinhas de Alfange e Ribeira de Santarém existiram, pelo menos, oito estabelecimentos deste tipo.
Quer estas unidades de assistências pertencessem a entidades religiosas, tivessem sido Instituídos pela nobreza, ou outros grupos sociais, todas tentavam responder a solicitações de ordem higiénica e de saúde pública, acolhendo e tratando os enfermos, mas fornecendo igualmente assistência a residentes ou peregrinos em romaria.

Dedicado aristocrata
João Afonso, um abastado aristocrata escalabitano da segunda metade do século XIV, destacou-se entre a nobreza local pela sua vocação e dom de caridade, dedicando-se à prestação de assistência aos necessitados durante o Antigo Regime.
A acção benemérita de João Afonso de Santarém assumiu contornos de relevante importância ao deixar indicações no seu testamento, redigido em 1426, que vieram a servir de base para a fundação do Hospital de Jesus Cristo. Este viria a tornar-se na mais importante instituição hospitalar da região de Santarém, e mesmo do País. Pelo menos, até à fundação do Hospital termal das Caldas da Rainha e do Hospital Real de Todos-os-Santos, em Lisboa.
Perante uma sociedade eminentemente rural, a criação do Hospital de Jesus Cristo, em Santarém, foi de encontro às tradições de assistência medievais, mas distinguiu-se pelo facto de ter sido fundado bem no centro da urbe. Contrariava, desta forma, a lógica da instalação dos hospitais das ordens militares e religiosas, geralmente implantados na periferia das povoações, onde recebiam os peregrinos ou os pobres.
O carácter pioneiro deste Hospital, salientava-se ainda por possuir um quadro de funcionários, desde administradores a auxiliares de serviços gerais, até à inclusão de um corpo médico próprio, assumindo a função de hospital em permanente actividade. Apesar da designação de Hospital, estas unidades tinham, na sua grande maioria, uma dimensão muito reduzida, sobretudo quando comparadas com as instituições de saúde que conhecemos actualmente.
Igualmente inédito era o facto de apoiar os pobres vitaliciamente, quando até à data apenas eram facultadas ajudas pontuais. Aos doentes internados era fornecida alimentação, reforçada em épocas festivas, bem como roupa e cama, cujo enxoval era periodicamente lavado e substituído. O novo hospital dispunha de apenas 13 camas para internamentos mais prolongados,
permitindo receber homens e mulheres, instalados em diferentes alas, consoante o sexo dos pacientes. Em comum tinham apenas a doença e a pobreza.
O surgimento desta instituição hospitalar, instalada num Paço doado pelo próprio João Afonso, veio contribuir para uma melhor organização e eficiência do ambiente assistencial, até aí bastante modesto e financeiramente limitado, decadente e desorganizado. Surgia assim uma nova realidade que, num futuro muito próximo, seria o modelo copiado pelas restantes unidades congéneres.

Ordem para agrupar
Em 1484, após a proclamação da bula papal de Inocêncio VIII, foram implantadas por toda a Europa medidas de centralização, com vista a integrar todas instituições de assistência numa mesma unidade hospitalar, numa tentativa de melhor satisfazer as necessidades sentidas na época.
Em Portugal, o processo de centralização dos hospitais medievais foi encetado durante o reinado de D. João II, adoptando-se o modelo seguido pelas instituições europeias semelhantes.
No âmbito desta reforma, o Hospital de Jesus Cristo de Santarém foi considerado o principal organismo assistencial da vila, ao qual todos os outros estabelecimentos existentes se deveriam juntar. Esta integração demonstra o estatuto avançado que a organização possuía, onde, para além do património e das posses da instituição, ocupava uma posição central no planalto da cidade alta. Tentava-se, sobretudo, alcançar um maior profissionalismo e criar um hospital central mais funcional, que reunisse as competências que estavam dispersas por pequenas instituições na vila e nos arredores.
Assim, em 1485, os 14 hospitais mais importantes da vila medieval acabam por ser anexos pelo Hospital de Jesus Cristo, uma situação que viria a estar na origem da criação da futura Santa Casa da Misericórdia de Santarém, fundada por volta de 1500.
Carlos Quintino